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13 de ago. de 2023

O enigma preguiça

 Talvez a preguiça seja a única coisa que jamais conheceu a fome. Perambula pelas ruas com um ar de indiferença, com um desprendimento quase poético, como se cada passo fosse uma afronta ao relógio. É a preguiça, meus amigos, que se instalou como hóspede indesejado nos corações dos beneficiários dos programas sociais de assistência.

Certo dia, ao passar pela calçada que ladeia a avenida principal, deparei-me com um espetáculo que faria até mesmo o mais empedernido dos observadores estremecer: uma fileira de indivíduos, cada um encostado em seu próprio poste, como uma série de folhas preguiçosas que decidiram parar para descansar, ignorando o vento que sopra e as obrigações que chamam. Tinham nas mãos sacolas plásticas, repletas daquilo que haviam pescado nas águas límpidas do supermercado, cortesia do cartão de benefícios.

Com os olhares perdidos no horizonte da inatividade, esses novos filósofos modernos, árduos contempladores de semáforos, criaram um paradoxo existencial: o tempo passa, mas eles permanecem no mesmo lugar, como se a própria geografia da vida os tivesse acolhido, tornando-se parte da paisagem urbana. O passante desavisado, o trabalhador apressado, todos olham para eles e veem a manifestação viva daquilo que talvez desejem secretamente: um minuto a mais, uma hora adicional para só existir.

A preguiça, ah, a preguiça! Ela não escolhe lado político, não liga para estratificação social. Ela se enraíza nas mentes e nas almas com uma obstinação digna de um tesouro nacional. Dizem que os programas sociais têm o nobre objetivo de oferecer um suporte temporário, uma mão amiga para aqueles que lutam contra as marés da desigualdade. E assim, a preguiça se veste de justificativas nobres, transforma-se em lamento e canta canções de uma tristeza falsa.

Pois, meus caros, a preguiça não é mera inatividade, é uma escolha consciente, uma opção pelo ócio que a vida moderna nos nega. É uma resistência silenciosa, quase um manifesto, uma resposta sutil ao ritmo frenético da sociedade. Mas, no fundo, ela é também uma armadilha, um engano para si mesmo, uma negação da força interior que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, pode nos levar além dos limites.

Assim, os contempladores de postes continuam sua jornada estática, desafiando o tempo e a lógica. E eu, como um espectador silencioso, me pergunto: será que eles já perceberam que a preguiça, esse manto confortável e sedutor, é também uma prisão que os impede de explorar o vasto horizonte das oportunidades? Ou será que, em seu olhar perdido, eles encontraram uma paz que escapa àqueles que correm incansavelmente, como ratos numa roda interminável?

Carlos Heitor Cony, onde quer que esteja, perdoe-me por este devaneio inspirado em sua prosa. Passeando pelas ruas da cidade, encontrei um retrato da preguiça que, por mais que seja retratado com a pincelada da ironia, guarda em si um universo de complexidade e ambiguidade. E assim, entre os postes e as sacolas plásticas, entre o tempo que corre e a quietude que persiste, a preguiça se revela como um enigma humano que ecoa através das eras.

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